A entrada em vigor da lei de certificação de Maquinistas (Lei 16/2011 de 5 de maio) veio alterar definitivamente o ecossistema em que se movem os Maquinistas Ferroviários em Portugal. A sua certificação fundamental, e licença para exercício da profissão, deixaram de estar dependentes das empresas para as quais trabalhavam e são atualmente matéria regulada pela Autoridade Nacional Ferroviária. Esta certificação assume agora validade europeia.
Tal facto fornece aos Maquinistas, perante e entidade patronal, um nível alargado de independência profissional e uma mobilidade que tradicionalmente não existiam.
No entanto, o atual quadro regulamentar, transporta-lhes igualmente responsabilidades acrescidas. Desde logo a necessidade de manter a sua certificação conforme com os parâmetros exigidos pela lei. Sejam eles físicos, psicológicos ou relativos a conhecimentos profissionais, dado que esta institui agora prazos uniformes e universais para que esses parâmetros sejam periodicamente avaliados.
Acresce ao quadro anterior a mercantilização da formação profissional inicial. Hoje, os novos Maquinistas, para obterem a sua formação base e poderem aceder ao exercício da profissão, são obrigados a investimentos financeiros elevados que, em muitos casos, somado o custo do curso mais alojamento, transporte e alimentação, pode atingir as duas dezenas de milhar de euros.
Em resumo, o acesso à profissão obriga à obtenção de uma licença emitida por um organismo estatal, segundo regras impostas por uma diretiva europeia, que apenas se obtém após concluir um programa de formação profissional que implica um esforço financeiro elevado ao candidato. A profissão de Maquinista Ferroviário é hoje uma profissão regulada cuja formação inicial custa tanto como um mestrado numa universidade inglesa. Bastante mais cara do que qualquer licenciatura em Portugal.
Ao longo da sua carreira, o Maquinista acumula ainda constante formação profissional e especialização sem a qual não poderá desenvolver a sua atividade de um modo seguro, produtivo e proficiente.
A nova regulamentação ferroviária, tendo em conta o desenvolvimento tecnológico e organizacional das últimas décadas, atribui hoje ao Maquinista tarefas, funções e responsabilidades no campo da segurança das circulações que eram anteriormente repartidas com outras categorias profissionais. A antiga e tradicional figura ferroviária do “condutor” há muito que foi extinta. Uma outra figura funcional, a do “chefe do comboio”, está hoje diluída e a sua funcionalidade é de tal modo difusa que, teoricamente, pode ser exercida por uma série de categorias profissionais que vão desde Técnicos “em serviço” até aos Operadores de Venda e Controlo (pessoal de bilheteiras). O RGS I[1] já não a define sequer. Existem ainda algumas referências funcionais relacionadas com esta função no atual RGS III[2], mas os textos propostos pelo IMT para os novos RGS III[3] e RGS IV[4] já não a referem nem lhe atribuem qualquer conteúdo funcional. As suas funções residuais, assumindo o que já acontece quotidianamente na prática, são acumuladas regulamentarmente pelo Maquinista.
Esta clarificação regulamentar deve igualmente ser refletida na organização funcional interna da empresa. A gestão técnica e de segurança do comboio e a sua gestão comercial devem ser operacionalmente separadas tornando, desse modo, claras as responsabilidades de cada um. Cabem as primeiras, como não poderia deixar de ser, aos Maquinistas.
Os avanços tecnológicos no material circulante, nos sistemas de exploração ferroviária e nos sistemas de comunicação, fazem com que o Maquinista, a partir da sua cabina, tenha absoluto controlo do comboio, fazendo a sua gestão técnica de um modo integral, no que respeita ao funcionamento dos seus sistemas de tração, conforto e do bom andamento e segurança da sua marcha. O maquinista é igualmente o interlocutor primordial entre o comando centralizado de tráfego do gestor da infraestrutura e o comboio em marcha.
A reorganização das carreiras e categorias profissionais proposta pela Empresa, atribuindo a outras categorias funções complementares no campo da preparação dos comboios para a marcha, tradicionalmente executadas pelos Maquinistas, libertando-os de tarefas secundárias e concentrando a sua atividade na sua função nuclear – a condução de comboios na linha – permitirá que esta obtenha assinaláveis ganhos de produtividade. Estes ganhos de produtividade serão principalmente veiculados para a Empresa pelos Maquinistas. Toda esta nova realidade tem obrigatoriamente de ser refletida no novo Regulamento de Carreiras.
Temos em mãos uma oportunidade única para dotarmos a CP de um Regulamento de Carreiras moderno, com os ganhos de produtividade que a tecnologia permite, mas liberto dos bloqueios ideológicos que fazem com que a sua estrutura remuneratória seja uma mentira que perdura há décadas e décadas. Para que se mantenham supostas equivalências entre categorias profissionais, fruto de quadros mentais herdados do Caminho de Ferro novecentista, têm-se atribuído aos Maquinistas prestações remuneratórias sob a forma de subsídios, fracionando assim nocivamente o seu salário, de modo a pagar-lhes justamente a sua produtividade, e relevância funcional, sem melindrar os bloqueios anacrónicos que ainda tolhem a CP. Urge uma mudança de paradigma. Se esta oportunidade for perdida, é provável que não exista outra.
[1] Regulamento Geral de Segurança I – Princípios Fundamentais
[2] Regulamento Geral de Segurança III – Circulação de Comboios
[3] Regulamento Geral de Segurança III – Circulação de Comboios e Movimentos de Manobra
[4] Regulamento Geral de Segurança IV – Sistemas de Exploração Ferroviária